A epígrafe de Resgatados, Os bastidores da ajuda financeira a Portugal, - «Pois Brutus era um homem honrado, e assim são todos eles, todos homens honrados» - põe imediatamente o mote central do livro: alta traição. Em termos romanescos é este o enredo. Quem é César? José Sócrates (desconfio que o senhor ia gostar desta imagem). Quem é Brutus? Teixeira dos Santos. Ao mesmo tempo, a linha de Shakespeare não deixa de remeter para os outros homens honrados e para o seu eventual carácter. Cabe ao leitor pesar, decidir e formar o seu juízo.
A descrição do processo que levou ao pedido de ajuda externa da República é feita de forma objectiva ao longo de catorze capítulos, organizados de forma cronológica e que se concentram essencialmente entre Janeiro de 2011 e Maio de 2011. Apesar da objectividade, o registo não é seco e frio. É fácil detectar uma certa dramatização que está ao serviço do interesse do leitor e da intensidade da leitura. Resgatados apela à nossa curiosidade em saber como os políticos se comportam nos seus gabinetes - o que é que eles dizem. Em nenhum momento os autores formam um juízo de valor sobre os intervenientes. Ainda assim são dadas algumas descrições do seu carácter que permitem ao leitor construir as suas impressões.
Com base nessas descrições podemos dizer que Sócrates é temperamental, cortante, obstinado, trabalhador, idealista, político. Teixeira dos Santos é reservado, racional, ponderado, diligente, técnico. Nestes retratos, a linha substancial que os desenha é precisamente esta oposição entre o político e o técnico, entre o homem que devora biografias de Napoleão e o homem que devora relatórios. Sublinhe-se, por exemplo, a seguinte passagem (p.69): "Frequentemente repetia uma frase que servia de escudo sempre que Teixeira dos Santos dizia que não era possível resistir. «É possível e nós vamos resistir, porque isto é um governo socialista.»" O assunto do livro é, portanto, a resistência do primeiro-ministro em pedir ajuda externa.
Fosse isto uma encenação, estaria por trás do palco uma linha com vontade própria e pouco racional que subiria constantemente: a evolução das taxas de juro da dívida soberana. Ninguém lhe pode escapar: os destinos estão traçados, assim como o das pessoas, que não têm qualquer espaço nas movimentações políticas. Os homens honrados põem o interesse nacional em cima da mesa quando este serve o seu interesse político. Não há aqui nenhuma novidade. No entanto, uma vez que o leitor decidiu confiar nos autores do livro, depois de ter lido o prefácio, não poderá escamotear o esforço descrito de Sócrates em evitar a austeridade e de como esta ia ao arrepio das suas posições como político. De acordo com o relato, Sócrates aceitou as medidas de austeridade mais graves quando lhe disseram que não existia outra saída dada a situação. Estou a defender Sócrates? Estou a procurar ser intelectualmente honesto com a informação que li no livro. O registo apresenta um homem frenético, a fazer de tudo para conseguir dominar a situação. Creio que o carácter vaidoso de Sócrates ficaria rendido ao supremo prazer da ideia de uma vitória difícil e eficaz. Tivesse ele alcançado os seus objectivos e caso fosse sucedido na aplicação do PEC IV, o estado da sua graça, potenciado por ele mesmo, teria sido insuportável. Mas não aconteceu e nunca saberemos o que aconteceria se o PEC IV tivesse sido aprovado. Provavelmente teria corrido mal. A oposição estava feroz e Sócrates estava sozinho. E se é certo que acalmou a Europa com o dito pacote de austeridade, a verdade é que era uma posição em que o primeiro-ministro não podia confiar totalmente. Por outro lado, a linha da dívida não descansava.
Das relações com a oposição, salienta-se a dificuldade da relação de Sócrates com Manuela Ferreira Leite e com Passos Coelho. Com Ferreira Leite não era nenhuma e com Coelho, o "seu parceiro de tango" (não se pode dizer que Sócrates não tem sentido de humor) como o descreveu no primeiro encontro, depressa se desfez. Sócrates tinha uma confiança tal em si e na gravidade do momento que se permitia fazer afirmações públicas que não estavam de acordo com o que foi dito em privado. Talvez achasse que o sensato era que as pequenas falhas que cometia (e que serviriam para a sua sobrevivência) seriam perdoadas, dada a gravidade da situação do país. Passos Coelho, um homem sério - fiel com a sua palavra - ,não gostou de ver o primeiro-ministro dizer uma coisa que ele não disse e as coisas ficaram azedas, chegando a contornos de hostilidade declarada e de silêncio embrutecido.
Como se sabe, e ao contrário do que disse, Passos foi a S. Bento na noite anterior ao anúncio do PEC IV. No dia seguinte, disse que não aprovaria o pacote e foi o começo do fim. Miguel Portas definiu Passos na perfeição: um farsolas. A Europa não achou piada nenhuma às acções reflectidas de Passos. Segundo as descrições é um homem cuja reflexão é introvertida e que age de forma firme quando chega a uma solução. No livro, dá sinais de exteriorização quando telefona à primeira pessoa quando sabe dos acontecimentos: «Miguel!» E quando foi a Bruxelas pela primeira vez enfrentou o desdém de Merkel: «So, you are the nice guy from Portugal» (p.173). Passos fez aquilo que nenhuma análise honesta pode ultrapassar: fez cair o governo em nome da austeridade para ir imediatamente a Bruxelas dizer que assumia inteiramente todos os compromissos e ainda mais. Tal comportamento talvez fizesse Alcibíades corar de vergonha. Os resultados estão à vista e parecem ser “gregos“.
Ainda assim, na altura, Sócrates - qual Antígona - não cedeu um milímetro na sua posição. Não. Não queria uma intervenção externa em Portugal. Entretanto, os banqueiros começaram a mover-se e a deixarem clara a sua posição. O cerco fechou-se. A posição era insustentável. Teixeira dos Santos pede a intervenção à revelia de Sócrates. O primeiro-ministro fora traído: «Pelas costas, como um patife» (p.195). As relações são cortadas. São iniciadas as negociações com a troika e o memorando é assinado.
Apesar da imparcialidade, creio que o livro actua no sentido de recuperar Sócrates. Não é difícil simpatizar com ele e, continuando neste tom literário, pode dizer-se que é quase apresentado como um herói vencido: «Naquele sábado, Sócrates estava a curta distância do seu Waterloo. Mas ainda não tinha baixado as armas» (p.150).* E a simpatia aumenta mais quando se olha para o comportamento do PSD, especialmente o de Eduardo Catroga - que mostra bem o seu valor de mercado. Creio que não vale a pena referir a pessoa do presidente da República. O que parece ser certo é que Sócrates estava condenado pela circunstâncias e os portugueses estavam fartos dele e com alguma razão. Não se pode dizer que não tivesse espinha face aos acontecimentos e até mesmo alguma espinha ideológica. Não é um homem risível, constrangedor, que sai destas páginas, mas sim um homem que procurou sobreviver e evitar a intervenção ao máximo, tornando-se obstinado, coisa que em último caso não o ajudou.
Face a este retrato, podem desvanecer-se algumas das muitas opiniões sobre o primeiro-ministro ou, pelo menos, olhar para ele com uma luz diferente. É claro que este não é um retrato definitivo e Sócrates despertará sempre um sentimento de desconfiança. Não se pode fazer tábua rasa das suspeitas que pairam sobre si. Uma coisa é certa. Sócrates não é um homem vulgar, mesmo quando parece ser silly. E merece mais do que um juízo de taxista, pelo menos no que toca ao seu papel como político.
K. Douglas