terça-feira, 30 de outubro de 2012

O rapto da Europa



"Se olharmos para a União Europeia como a solução para tudo, entoando «Europa» como um mantra, agitando a bandeira da «Europa» perante os heréticos «nacionalistas» recalcitrantes e gritando «Abjura, abjura!», um dia acordaremos e dar-nos-emos conta de que, longe de ter resolvido os problemas do nosso continente, o mito da «Europa» se tornou um impedimento para que os identifiquemos. Descobriremos que ela se tornou pouco mais do que uma forma politicamente correta de esconder dificuldades locais, como se a mera invocação da promessa de Europa pudesse substituir a solução de problemas e crises que afetam realmente o lugar. Poucos quereriam negar a existência ontológica da Europa, por assim dizer. E alguma vantagem egoísta em falar dela como se já existisse num sentido mais forte, coletivo - o desejo pode realmente ajudar a gerar o pensamento, e já o fez em grande parte. Mas há coisas que não pode fazer, há problemas que não pode resolver. A «Europa» é mais do que uma noção geográfica mas menos do que uma resposta."
Tony Judt, Uma grande ilusão? Um ensaio sobre a Europa, Lisboa, Edições 70, 2012.


Estas palavras de Tony Judt têm já perto de vinte anos. Em Maio de 1995, data em que o historiador inglês proferiu uma série de palestras no Johns Hopkins Center, em Bolonha, a Europa que lhes serviu de mote era outra - a dos 15, ainda na ressaca do Tratado de Maastricht e sendo o Euro apenas um projecto. Judt tentava então vislumbrar um futuro para uma Europa que, já cronologicamente distante dos anos do pós-guerra que a inspiraram, parecia cada vez mais heterogénea social, económica e politicamente. As discrepâncias entre o Norte e o Sul eram já evidentes e adivinhava-se que uma abertura a Leste agudizaria as clivagens no seu interior. A Alemanha afirmava-se progressivamente como a potência hegemónica na União Europeia face a uma França incapaz de a acompanhar. Previa Judt:

"Doravante, a Europa será dominada pela Alemanha de uma de três maneiras possíveis: a Europa Ocidental original (pré 1989), mas sob liderança alemã - que seria a preferência relutante da maioria dos políticos franceses e mediterrânico-europeus; a Europa Central pró-alemã, com a Alemanha a desempenhar um papel benigno numa União alargada que a atual liderança concebeu; a Europa Central antialemã, com a Alemanha a ser considerada pelos seus vizinhos a sul e a leste mais como um fardo e uma ameaça do que um benefício. Estas duas últimas podem muito bem acabar por se tornar na mesma [...]"

O futuro a que Judt alude é o nosso presente e é interessante ler este seu ensaio em 2012, numa Europa que já se abriu a Leste, que já concretizou o projecto da união monetária, mas onde o desemprego subiu em flecha (como Judt previa), onde o Estado social sofre com um rácio desfavorável entre contribuintes e beneficiários (idem) e onde se vive uma crise económica sem fim à vista (idem, idem). E lá diz o povo: "casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão". A falta do "pão" pôs a nu as fendas históricas da (Des)União Europeia.
Os próximos anos (talvez nem tanto) revelarão para onde Zeus/Touro/Capital(?) leva esta donzela.

Sally Bowles