segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Imitação de Vida




Foi Woody Allen que disse, em Maridos e Mulheres, “life does not imitate art, it imitates bad television”. Na verdade, por vezes, a “má televisão” tem como modelo o bom cinema. A que propósito vem isto? A propósito dos filmes que Douglas Sirk, realizador alemão de origens dinamarquesas, concebeu nos seus anos em Hollywood, filmes que se enquadram num género melodramático, no qual se encontram as raízes das modernas telenovelas. No entanto, os filmes de Sirk atingem, por vezes, a perfeição absoluta. É o caso de Imitação de Vida (1959), o último dos filmes americanos de Sirk, em re-estreia em Portugal esta semana.
Descobri Sirk há alguns anos quando, naquela idade adolescente em que se toma aquilo que os nossos role models dizem como se fosse algo de indiscutível e sagrado, três dos meus realizadores de eleição citavam Sirk como influência determinante no seu próprio estilo. Falo de Fassbinder, Almodóvar e Todd Haynes. Tenho de lhes agradecer o fascínio da descoberta desses melodramas lacrimejantes, exagerados e muito, muito mais subtis e inteligentemente estruturados do que a crítica que lhes era contemporânea alguma vez percebeu.
Imitação de Vida é, aparentemente, uma história de mães e filhas, de conflitos geracionais moldados pelo tradicional “filme de mulheres” de Hollywood. Claro que, conhecendo-se Sirk e o seu sempre mencionado uso de espelhos e superfícies, o espectador sabe que o filme é muito mais do que isso. Aparentemente, é um filme para as donas de casa da classe média americana dos anos 50; aparentemente, é sobre os custos familiares e emocionais que uma mulher paga por optar por uma carreira, em vez de dar atenção à sua filha em crescimento e à sua própria vida sentimental; aparentemente, o centro do filme é ocupado por Lana Turner e Sandra Dee; aparentemente, o conflito entre a criada e a sua filha espelha o primeiro conflito. Claro que isto é apenas a superfície – palavra central, repetimos, quando se fala de Sirk. Somos levados a pensar que a história do filme é sobre a actriz em ascensão – e depois em pleno sucesso – interpretada por Turner. Esse centro seria, se assim fosse, um vazio completo. Lora Meredith é quase um arquétipo, é distante, sempre acompanhada por uma palete de azuis, de tons tão frios como a própria personagem. Como até o mais ingénuo iniciado no cinema do realizador sabe, o uso das cores é um dos aspectos centrais em Sirk; eles tornam explícito o tom emocional da personagem, os seus sentimentos reprimidos, o seu estado interior – não é preciso explicá-lo, o espectador sabe-o pelos jogos de luz e cores. Contraste-se os tons de Turner com as cores que rodeiam a criada Annie e a sua filha Sarah Jane, com os vermelhos, com as cores quentes. Estas são personagem que vivem, que vibram, que têm emoções reais e dolorosas, tão longe dos conflitos esquemáticos de Turner/Dee. Lora é o falso centro; se quiséssemos exagerar, diríamos que ela é o “macguffin”.
Os problemas de Annie e Sarah Jane não saem de um qualquer padrão pré-definido e estereotipado pelos dramas femininos, eles são demasiado reais. É este par de mãe e filha que preenche o aparente vazio emocional do filme e é com elas que Sirk subverte e supera as convenções do género, abrindo-as a um mundo muito mais complexo. Elas tornam-se, ainda que subtilmente, na verdadeira história, apesar de Sarah Jane ser, de alguma forma, um espelho de Lora. Annie é a criada negra de Lora, que esta vê como uma verdadeira amiga, já que juntas partem do nada e superaram todos os obstáculos. Sarah Jane é a jovem de pele clara, que vê a sua tonalidade como forma de ultrapassar os limites impostos pela sociedade, pois todos a vêem como branca – até descobrirem que a sua mãe é negra.
Sirk introduz através destas personagens o problema do racismo, de uma forma surpreendentemente intensa para um filme americano dos anos 50. O que o torna ainda mais intenso e insuportavelmente doloroso é a forma como este racismo aparece a dois níveis. O primeiro nível, o mais óbvio, através das provações de Sarah Jane, do seu inconformismo e desespero que a levam a renegar a sua mãe, como única forma de conseguir alguma coisa da sua vida – e, assim, sucumbindo ao aparente, à superfície, tão dolorosamente sublinhado no momento em que Annie põe a filha frente ao espelho, querendo que ela olhe para além do que vê nele. O segundo é mais escondido, mais insinuado. Lora, centrada em si e não vendo mais nada para além de si própria, é amiga de Annie. Não sabe, no entanto, nada sobre ela; o espectador pergunta até que ponto esta amizade é real, até que ponto não é apenas um reflexo dessa personalidade obcecada consigo mesma de Lora. Há aquela cena difícil e constrangedora em que Lora descobre que Annie tem amigos e vida para além daquela casa. Ela não sabia – “you never asked”, diz-lhe Annie. As duas amigas tinham partido juntas do nada – Lora triunfa e enriquece, Annie será sempre a criada.
Os filmes de Sirk não são realistas, há uma artificialidade assumida pelo realizador. Mas também não são apenas filmes manipuladores e decorativos para donas de casa. São abertamente sentimentais e melodramáticos, provocando um distanciamento e ao mesmo tempo um envolvimento (porque um exige o outro) no espectador. Aqui Sirk revela toda a sua influência brechtiana – ele encenou Brecht na Alemanha e foi muito influenciado pelo dramaturgo – de distanciamento e alienação, de teatralidade. Esta é uma das pontes de ligação com Fassbinder, para além da outra ainda mais óbvia – a força das personagens femininas. Foi, aliás, Fassbinder que sublinhou – e estou a parafrasear – como as mulheres de Sirk eram únicas no cinema americano de então, pois agiam e não se limitavam a reagir. Estas mulheres pensam e ultrapassam aquele estatuto tão típico de objecto decorativo. A tal ligação a Almodóvar e Haynes vê-se também aqui.
Quanto a este último, gostaria de deixar aqui uma nota ou duas. Todos sabem que Far From Heaven, de Haynes, referencia directamente um outro filme de Sirk, All That Heaven Allows. Até o casaco do jardineiro interpretado por Dennis Haysbert é igual ao que Rock Hudson usava no filme de Sirk. Haynes disse, na altura, que queria retomar os temas que estavam subentendidos nos filmes de Sirk e trazê-los à superfície, torná-los explícitos e abordá-los como uma audiência contemporânea esperava que fossem abordados. Referia-se, sobretudo, a dois temas – a homossexualidade e o racismo. De facto, o filme de Haynes lembra-nos por vezes Imitação de Vida, sobretudo naquela bondade e decência irrealista que Raymond Deagan partilha com Annie Johnson – o jardineiro e a criada negra são personagens que se sacrificam, como símbolo de tudo o que é verdadeiro num mundo de máscaras. O filme de Haynes também é um filme sobre a capacidade de ver para além da superfície – tal como o anterior, Velvet Goldmine, que ia buscar o mestre do disfarce e da máscara, Oscar Wilde, para falar sobre identidades e duplos.
Vejam Imitação de Vida. Nem que seja pela beleza das cores (tão belas quanto estas, só as de Imperatriz Yang Kwei-Fei de Mizoguchi) ou pela cena final com a enorme e fabulosa Mahalia Jackson, verdadeira rainha do gospel. Dia 13 de Dezembro, no cinema.

Maria Braun