Para
quem ainda não viu, a lista de melhores filmes de sempre (segundo vários
realizadores e críticos) da revista do BFI, Sight & Sound, saiu em Agosto.
Já há cerca de um mês que esta informação circula online, embora incompleta (há pormenores que só estão disponíveis
em papel). Esta lista começou a ser publicada em 1952 e é revista a cada 10
anos. A grande notícia este ano é a saída de Citizen Kane do 1º lugar após
muitas décadas, para dar lugar a Vertigo. Fico contente, já que Vertigo é um
dos meus filmes preferidos. Outro daqueles que, sem dúvida, estariam na minha
lista, não só ficou em 3º lugar, como ficou em 1º na lista votada pelos
realizadores participantes. Falo de Tokyo Story, de Yasujiro Ozu, o tema deste post.
Tokyo
Story (Tokyo Monogatari, 1953) é um daqueles filmes que não nos largam por
muito tempo. Lembro-me de quando o vi pela primeira vez e de como não me saiu
da cabeça durante dias e dias. Foi o meu primeiro filme de Ozu e levou-me a
procurar todos os que consegui encontrar do realizador. Suponho que tive uma
“fase japonesa”, já que a descoberta de Ozu veio na sequência de uma overdose de filmes de outros
realizadores como Kurosawa, Mizoguchi ou, num cinema mais recente, Takeshi
Kitano.
A
história do filme é a de um choque entre um Japão mais antigo e tradicional e
um Japão mais moderno, pós-guerra. Os valores, os estilos de vida, tudo isso
está representado por uma família dividida pelas gerações, pelos filhos que não
têm tempo para os pais, pelo comportamento dos netos, pelos pais que se sentem
deslocados e fora de tempo na moderna Tóquio. Também as memórias e
consequências da 2ª Guerra Mundial estão presentes no filme, com o filho desaparecido
e a viúva dele, que vai criar uma forte ligação aos sogros e que é um dos
centros emocionais da história. Não é um filme que abertamente condene as suas
personagens, tem certamente um sentido de inevitabilidade, mas, mesmo assim, tem
algo a dizer sobre amor filial e sobre a “morte” do velho Japão e da família
tradicional; não força julgamentos simplificando ou demonizando/santificando as
personagens, é um filme de objectividades, que deixa que a história e as acções
falem por si. É, no seu espírito, um filme conservador, um filme com uma
nostalgia pelos valores que vão desaparecendo, por uma identidade nacional que
está a ser alterada pelo tempo, realizado por aquele que já foi chamado o mais
japonês dos realizadores daquele país.
Tal
como não força julgamentos, não força a emoção, não a explora de forma
mercenária, mas, mesmo assim, provoca uma forte reacção emocional na audiência
– ou, pelo menos, assim foi comigo e eu sou daquela espécie de espectador que
tende a não reagir emocionalmente a filmes, muito menos quando isso é esperado
e provocado. Este é um filme que deixa de fora precisamente aqueles
acontecimentos que outros explorariam ao máximo, tendo o espectador acesso a
eles apenas em segunda mão. A composição é tipicamente Ozu, uma experiência
visual cuidadosamente construída, com a câmara sempre rente ao chão e muito
pouco móvel. Filma espaços em tempo real, com o movimento sendo
responsabilidade das personagens, emolduradas pela câmara do realizador, que já
está no espaço quando elas entram e que lá continua, por vezes, quando saem. A
emoção do filme vem também das personagens enquadradas pela câmara, não é
forçada por truques de estilo e daí a sua autenticidade. Toda a composição
visual do filme e o estilo característico e inconfundível de Ozu explicam
porque este é um filme de realizadores e porque surge em primeiro lugar na sua
lista.
O
sucesso do filme fora do Japão deve-se à sua universalidade pois, apesar de se
enquadrar num determinado espaço e tempo (Japão do pós-guerra) e nas tradições
culturais e familiares de um determinado país, a sua temática tem um apelo que
atravessa fronteiras. O progresso e as mudanças sociais que dele advêm, a morte
da família alargada, as dinâmicas familiares que mudam com o crescimento dos
filhos e o envelhecimento dos pais – tudo isso pode ser entendido na Europa dos inícios do século XXI como é no Japão
de meados do século XX. Sinais positivos
para a permanência do filme nesta lista por muitos anos – e, mais importante do
que isso, para que continue por muito tempo a ser amado pelos espectadores de
cinema e a ser visto por eles como um filme essencial para todos aqueles que vivem
esta arte.
Maria Braun