segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Domingo à noite

Desculpem a minha demora em escrever. Terminei, há uns dias atrás, o tal grande e famoso romance russo que estava a ler: Anna Karenina. É inesquecível. Talvez escreva algumas impressões em breve, nomeadamente sobre a sensibilidade apurada de Tolstoi - acreditem: um cintilar no olhar, quase imperceptível, é suficiente para que a vida mude de forma irremediável. Por agora dedico-me a umas notas soltas que me foram surgindo ao longo deste serão de Domingo escuro, frio e deprimente.

A primeira coisa de que gostaria de falar é sobre o acordo ortográfico. Não sou a favor do acordo ortográfico e não o vou utilizar na minha privada. No entanto, se algum dia tiver que escrever um documento público, de carácter oficial, o que seja, então farei uso do acordo. Por outro lado, acompanho a aprendizagem de uma criança e, nessa situação, sigo o acordo - tanto mais que está implementado nos manuais escolares. Isto para dizer que não aplaudo, de modo algum, Vasco Graça Moura. Não creio que se possa imprimir juízos e determinações pessoais na condução de uma instituição que, ainda que de direito privado, está na dependência administrativa do Estado. O presidente é o órgão máximo da fundação e é nomeado pelo ministro da Cultura. Ups, secretário de Estado. Portanto, a deliberação de Graça Moura, para mim, não é mais do que a criação de que um pequeno nicho de poder e que se apresenta incólume, tanto que o secretário de Estado já fez saber que nada poderá fazer quanto à decisão (não?!) e o primeiro-ministro, em resposta a António José Seguro é cabal no esclarecimento: «Queria dizer-lhe que o Governo não tem nenhum esclarecimento a acrescentar sobre esta matéria. O acordo ortográfico entrou em vigor a 1 de janeiro deste ano, assim o confirmam os manuais escolares, assim como todos os atos oficiais, e ele será cumprido.» Bem, porque a aplicação do acordo ortográfico reveste a forma de lei, a decisão de Graça Moura pode levantar algumas questões.Nomeadamente, qual é o espaço de acção dos administradores? Pode alguém que está na alçada da administração do Estado dizer: eu não aplico? Sim? Então, as consequências podem ser extensas.

Disse que este serão é escuro, frio e deprimente. O terceiro adjectivo não deriva necessariamente dos dois primeiros, mas sim da televisão, das notícias. dos comentadores, de Marcelo Rebelo de Sousa, da maneira condescendente com que tratam as pessoas - os "portuguesinhos". Não tive oportunidade (faço aqui um pequeno excurso) de ler na íntegra a entrevista de Judite de Sousa à Pública, mas o que li foi suficiente e grave. A senhora orgulha-se, por assim dizer, de fazer parte de uma narrativa que levou ao pedido de resgate do país. Há muitas coisas que podem ser ditas sobre o assunto e também não se pode ser ingénuo no que diz respeito à interferência da comunicação social na política. Mas julgo que deve ser dita uma coisa. Judite de Sousa chegou à TVI e quis mostrar as suas insígnias de jornalista (não resisto: Manela, vê como eu chego e despacho o Sócrates num instante e tu nunca o conseguiste fazer). Realiza quatro entrevistas a banqueiros que queriam a intervenção externa e assim foi feito, conseguiram (e talvez não houvesse alternativa - deixe-se essa possibilidade em cima da mesa). Qual é o resultado, Judite de Sousa? Que espaço de reflexão levantou? Que movimentos sociais ou de cidadania originou? Nada, de nada. "Apenas" um programa de ajustamento económico e um governo cheio de gente incompetente que está a acabar com o que resta do país. É certo, eu não li a entrevista na íntegra, mas acho que a pergunta é necessária: o que é que ganhou?  O que é que ganhou como jornalista? O que é que se ganhou? E porque é que a comunicação social, na sua generalidade, está num estado de bonomia bovina para com este governo?

Voltando à sensação de depressão dada pela televisão (passava a ferro enquanto a voz de Rebelo de Sousa chegava da sala). É horrível a condescendência com que se trata o português dito comum. É preciso explicar as nomeações e a atribuição de subsídios quando o trabalhador comum ficou sem eles, caso contrário, as pessoas não compreendem. Isto é indecente! Mas o que é que há para compreender? Não há excepções, ponto final. Não há uma massa de gente empobrecida, que vê cortes nas prestações sociais, subsídios, etc., e uma casta para quem os direitos são inalienáveis. Isto é óbvio, não precisa de ser dito. 

Por fim, finalmente vi Sangue do meu Sangue de João Canijo. Devo dizer que fiquei maravilhado e de coração apertado.



Sangue do meu Sangue, João Canijo, Portugal, 2011

K. Douglas