Vou falar-vos do meu último livro de cabeceira.
Perdoem-me a ignorância mas descobri John Dos Passos há pouco tempo. E acreditem que senti agora o peso dessa lacuna no meu currículo de leitora. Parafraseando alguém que eu, a Maria e o K. conhecemos em tempos passados - Sim, eu mereceria ir para o Inferno se nunca tivesse lido Dos Passos. Felizmente, acrescentei um carimbo ao meu passe para o Céu.
O livro é Manhattan Transfer, recentemente editado pela Presença com tradução e notas (não de rodapé, lamentavelmente) de João Martins. Através de cerca de quatrocentas páginas, Dos Passos leva-nos pela mão a calcorrear as ruas de Nova Iorque. Está bem que é a Nova Iorque das primeiras décadas do século XX, de Gershwin nos gramofones, dos homens de gabardina e chapéu de feltro, das senhoras que empoeiravam o nariz. Mas é essa a Nova Iorque que eu desejava conhecer e não a Big Apple dos Big Macs.
Um conselho, tire um fim-de-semana para o ler e petiscar alguma coisa entre os capítulos. Não é um livro afecto a interrupções, a uma leitura entre o Campo Grande e o Saldanha. A narrativa é fragmentada, nem sempre fácil de acompanhar. As personagens são muitas e dispersas num percurso temporal de cerca de 30 anos.
Mas, acreditem, vale o fim-de-semana. Porquê? Dos Passos explica, num instante na vida de Ellen (e que magnífica personagem, esta!):
"Recosta-se no fundo do táxi de olhos fechados. Relaxar, tem de permitir-se relaxar mais. É ridículo andar sempre por aí toda enervada até tudo se transformar em giz que chia em quadro preto. E se eu tivesse ficado horrorosamente queimada, como aquela rapariga, desfigurada para toda a vida? Provavelmente vai conseguir bom dinheiro da velha Soubrine, o começo de uma carreira. E se eu tivesse ido com aquele rapaz de gravata feia que me tentou seduzir?... Meia dúzia de larachas diante de um banana-split ao balcão de uma geladaria, cidade acima de autocarro e cidade abaixo outra vez, com o joelho dele contra o meu e o braço dele á volta da minha cintura, umas carícias mais ousadas num portal... Há vida para viver, bastava não dar importância. Importância a quê, a quê? À opinião da humanidade, ao dinheiro, ao sucesso, aos átrios do hotel, à saúde, aos guarda-chuvas, às bolachas Uneeda...? É como um brinquedo avariado esta minha cabeça sempre a fazer brrr sem parar. Espero que ainda não tenham pedido. Se não tiverem convenço-os a ir jantar a outro lado. Abre o estojo de maquilhagem e começa a pôr pó-de-arroz no nariz".
Bem-vindos a Nova Iorque!
Sally Bowles