sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Quando o telefone toca...

O meu avô nunca quis ter telefone em casa. E os filhos bem insistiam, zelosos pelos seus velhos. Mas nisso, ele era irredutível. Por telefone, as notícias ruins chegam mais rápido, dizia. Passados muitos anos, tenho de dar razão ao avô - os três, quatro dias que a carta demorava a chegar eram dias roubados à desgraça.
Não é esse o motivo porque não gosto de telefones. Embora admita que poucas coisas são mais perturbadoras do que um telefonema a meio da madrugada. Cheira a tragédia a cada toque.
Há algo de impessoal quando uma voz não é acompanhada por um corpo. Ouvimos alguém do outro lado da linha e tentamos imaginar a expressão que acompanha cada frase, tentamos interpretar a entoação e o som de fundo. Já repararam que numa chamada telefónica não há lugar para silêncios. Cada segundo que demoramos a responder é acompanhado por um "estás a ouvir?" do outro lado. Somos obrigados a uma rapidez de resposta que vai contra a nossa necessidade básica de ponderação. O diálogo torna-se pobre. Pelo menos para mim, que não sou particularmente dotada no campo da oratória e resumo as minhas deixas a um "Estou bem", "Choveu" e "Novidades?"
Essa é uma das razões porque, à falta do tete-a-tete, privilegio a comunicação escrita. O e-mail é uma boa opção e socialmente bem aceite visto que a velhinha carta tornou-se num objecto aparentemente inadequado ao ritmo do nosso quotidiano e à tirânica velocidade de circulação da informação.
Contudo, continuo a gostar de cartas, desde que não sejam da EDP, da EPAL ou de outra sigla qualquer. Não que as escreva com frequência. Bem pelo contrário. Mas existe um prazer secreto em abrir um envelope fechado a saliva (e há algo de mais pessoal do que isso?) e encontrar uma folha de papel dobrada em três com perfeição e arte. Desdobro-a e leio "Querida Sally". E espero pela boa nova na próxima linha.
Sally Bowles

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Go David! You're the best!

I’d do the Corrs’ drummer, the lead singer and that one who plays the violin

Há cerca de um ano atrás encontrei consolo em David Brent (salvo seja). A história não merece ser contada, até porque este não é o espaço para ela. No entanto, há que fazer o elogio dessa magnífica categoria que responde pelo nome de necessidade. É ela que nos faz conviver horas e horas com pessoas que não interessam nem ao menino Jesus. É por isto que as palavras de Tim, no final da série, são extraordinárias (conseguem um misto de redenção e de resignação) : The people you work with are just people you were thrown together with. Y'know, you don't know them, it wasn't your choice. And yet you spend more time with them thanyou do your friends or your family. But probably all you've got in common is the fact that you walk round on the same bit of carpet for eight hours a day. And so, obviously, when someone comes in who you have a connection with - yeah, and Dawn was a ray of sunshine in my life - it can mean a lot. But if I'm really being honest, I never really thought it would have a happy ending. I don't know what a happy ending is. Life isn't about endings, is it? It's a series of moments. And um, if you turn the camera off, it's not an ending is it? I'm still here. My life is not over. Come back here in ten years. See how I'm doing then. 'Cause I could be married with children, you don't know. Life just goes on.

E porque a vida continua, o bla di, o bla da, aqui fica referenciado um dos meus momentos preferidos do Office inglês (sim, Maria, tinhas toda a razão): quando David diz como trataria da saúde (!) às meninas dos The Corrs. Deve ser dos mais óbvios, but I really don't care. Além do grande momento de David - veja-se como ele tenta reverter a situação constrangedora - , gosto particularmente do momento em que Tim parece olhar directamente para nós. Brilhante.
K. Douglas

sábado, 23 de janeiro de 2010

Desculpe, foi engano.


Grace Kelly, Dial M for Murder, 1954.

Em conversa com a Sally, fiquei a saber que tínhamos visto no mesmo dia um filme com Grace Kelly, ambos de Hitchcock: Dial M for Murder e Rear Window, ambos de 1954 (há demasiados "ambos"nesta frase). Achei esta coincidência engraçada e, agora, depois de um jantar tipicamente alentejano - migas com carne, acompanhadas com café - decidi escrever qualquer coisa sobre o assunto. Começo pelas louras. Para muitos, Grace Kelly é a ultimate blonde de Hitchcock. Eu tendo a concordar, embora tenha um ""fracão"" por Ingrid Bergman em Notorious (aquele beijo) e por Tippi Hedren em Os Pássaros. Mas não esqueço Grace Kelly e a sua saia a roçar pelos móveis do quarto de James Stewart. Tal erotismo só se encontra noutros filmes de Hithcock: o aludido beijo entre Ingrid Bergman e Cary Grant, as sequências iniciais de Psycho ou as perseguições de Stewart a Kim Novak pelas ruas de S. Francisco em Vertigo, o meu filme preferido de Hitchcock (embora hoje compreenda um pouco mais a Maria, quando ela apontava Psycho como o seu preferido).

A Sally diz que ninguém sobe com tanta elegância umas escadas como Grace Kelly. É capaz.. Em Chamada para a morte - logo nos primeiros 5 minutos - já ninguém a esquece. Quando recebe o amante, Grace deixa de usar a roupa casual, ainda que elegante e sofisticada, do quotidiano com o marido e enverga um vestido vermelho. Estes pormenores são, como se sabe, importantes no cinema de Hitchcock. O caso mais conhecido foi a insistência para que Kim Novak usasse cinzento em Vertigo. A actriz não queria, o cinzento não a favorecia, mas as instruções dadas foram rigorosas: qualquer tom de cinzento, desde que seja cinzento.. A cor, aliada ao seu rosto e aos seus cabelos, criavam um efeito débil que a fariam aparecer como que saída do nevoeiro de S. Francisco. Assim, e voltando a Kelly, o vestido vermelho, revela a paixão  e o sexo inexistentes no seu casamento.

Há duas coisas que me fizeram gostar bastante deste filme. Em primeiro lugar é o filme que mais se aproxima do registo d' A Corda, precisamente pela sua teatralidade (é certo que o filme é a adaptação da peça de teatro com o mesmo nome) e pelo facto de acontecer quase exclusivamente em interiores. Mas ao contrário d' A Corda, que não tinha edição nenhuma, Chamada para a morte, oferece ao espectador belos planos, reconhecendo este, de imediato, o olho de Hitchcock. Em segundo lugar: o vilão. É talvez o meu preferido. A interpretação de Ray Milland é muito boa. Trata-se de um homem de uma posição social elevada, descontraído, amistoso - um anfitrião perfeito para fazer a melhor sala - e que planeia meticulosamente a morte da sua mulher. É precisamente aqui que está o seu interesse. Não se trata de um homem com dois lados, com uma fachada. Ao contar o seu plano ao executante, não há uma alteração do seu registo afável. O seu controlo quase que é brincalhão. Mas quando Kelly atende o telefone, ele devia ter dito: "desculpe, foi engano".

K. Douglas

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Os meus 10 filmes dos anos 00

Julianne Moore, Far from Heaven, 2002.


É verdade, o século começou às 00h do dia 1 de Janeiro de 2001. Em todo o caso, os anos 00 chegaram ao fim. Não me importava nada de ter o talento de Douglas Coupland para descrever uma época, para cristalizar os acontecimentos e adensá-los nos pormenores do quotidiano, mesclando as engenhocas tecnológicas com a aura dos sítios e com a intimidade das personagens (este é o toque de mestre de Coupland, penso). Mas não tenho. O que dizer dos anos 00? Pensei minimamente nesta pergunta e ocorreram-me algumas coisas, mas achei que a coisa acertada e justa seria recorrer àquela ideia de Chesterton (bem sei, bem sei, mas deixemos o seu insuportável reacionarismo e sublinhemos o seu humor genial - as vacas económicas não deixam de o afirmar) que diz que aquilo que nos molda e toca verdadeiramente é o que nos acontece na nossa vida - a nossa relação directa com as coisas e como isso nos afecta. Não se pense que isto é um eufemismo para expressar um estado de egoísmo, não é. Pois bem, uma das melhores coisas destes anos foram os filmes. Não apenas aqueles que vi em sala, os quais apontarei adiante, mas também os da cinemateca, as sessões quase caseiras do Museu República e Resistência e, mais que tudo, as sessões caseiras, nas quais se incluem várias ocasiões com a Maria e a Sally. Espalhados por aí, estão uns quantos filmes de que gosto muito.

A minha lista, como é óbvio, reflecte os meus filmes preferidos. Não atendi a nenhum critério específico. Há oito títulos que foram anotados quase de rajada e dois que surgiram depois. Um deles é Saraband. Vale sempre a pena uma pessoa perder-se no Alvaláxia para ver um grande filme. O prólogo do filme, com as aproximações ao rosto de Liv Ullmman, conquistou-me de imediato. Anote-se também que torço a cara a esta classificação, mas forcei-me a fazê-la.

10 - Dogville, Lars Von Trier, 2003.

9 - Donnie Darko, Richard Kelly, 2001.

8 - Brokeback Moutain, Ang Lee, 2005.

7 - In The Mood for Love, Wang Kar Way , 2000.

6 - Saraband, Ingmar Bergman, 2003.

5 - The eternal Sunshine of the Spotless Mind, Michel Gondry, 2004.

4 - Lost in Translation, Sofia Coppola, 2003.

3- Mulholland Drive, David Lynch, 2001.

2- Kill Bill, Quentin Tarantino, 2003-04.

1- Far from Heaven, Todd Haynes, 2002.

Fiquei quieto a olhar para a lista, à procura de qualquer coisa objectiva para a comentar, mas só consigo pensar que são grandes filmes. Sim, há outros, sim, há um ou dois que podem ser discutíveis. Sim, direi coisas quando sair a nossa lista final.


K. Douglas

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Cinema 00'

O balanço de final do ano é uma tradição já plenamente instituída entre nós. Chegamos à última semana de Dezembro, ainda com a ressaca do Natal, e recordamos os grandes momentos que o ano nos trouxe. Mas o final de 2009 tem um atributo especial. É verdade que não podemos falar de final de década. É senso comum que, para isso, teremos ainda de esperar pelas 24h do dia 31 de Dezembro de 2010. Porém, o facto do algarismo das dezenas passar do 0 para o 1 é digno de ser celebrado com mais uma taça de champagne e com mais algumas passas. Também é um momento digno de um balanço mais alargado.
O nosso camarada K. propôs-nos, então, a elaboração de um top 10 dos filmes que marcaram os últimos dez anos. Uma tarefa árdua, sem dúvida! Porém, aceitámos o desafio.
Confesso que não pensei muito, optei por uma escolha mais institiva. Se começasse a ponderar com maior profundidade, decerto que não conseguiria eleger apenas dez. Portanto, a lista que vou apresentar em seguida é a minha escolha no dia 30 de Dezembro, às 15.40. Daqui a uma hora teria, possivelmente, uma lista completamente diferente.
Contudo, optei por alguns critérios. Primeiro, tentei aliar as minhas escolhas pessoais a um gosto mais massificante. Segundo, esforcei-me por uma diversificação dos géneros. Terceiro, recusei dar uma ordem à lista - tal seria demasiado difícil e obrigar-me-ia a comparar obras muito diversas entre si.
Sem mais conversa, aqui fica a lista:
  • High Fidelity [Alta Fidelidade], de Stephen Frears (2000)
  • The Lord of the Rings - The Fellowship of the Rings [O Senhor dos Anéis - A Irmandade do Anel], de Peter Jackson (2001)
  • Gosford Park, de Robert Altman (2001)
  • Far from Heaven [Longe do Paraíso], de Todd Haynes (2002)
  • A Cidade de Deus, de Fernando Meirelles (2002)
  • Finding Nemo [À Procura de Nemo], de Andrew Stanton (2003)
  • Kill Bill, de Quentin Tarantino (2003-2004)
  • The New World [O Novo Mundo], de Terence Mallick (2005)
  • Persepolis, de Marjane Satrapi (2007)
  • La Graine et le Mulet [O Segredo de um Cuscuz], de Abdel Kechiche (2008)
Nos próximos dias, iremos publicar a lista final, elaborada em conjunto pelos três confusers. Por isso, aguardem com expectativa!
Sally Bowles

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Natal




Maria Braun

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Um Natal com Audrey Hepburn

As comédias românticas têm uma rainha absoluta: chama-se Ninotchka. Depois, temos o Apartamento de Billy Wilder e de seguida este filme, talvez o meu preferido com Audrey Hepburn.

K. Douglas

"The rain in Spain stays mainly in the plain" or yes, it's loverly

Audrey Hepburn, My Fair Lady, 1964.

Proponho um exercício de regresso à infância com a consciência de esta guardar um grande filme: My Fair Lady de George Cukor (1964). Vejamos pois com os olhos de quem sabe reconhecer um grande filme e, também, ao mesmo tempo, com um olhar que se abre e vê o encanto de Audrey Hepburn, que não tinha, é certo, voz para o papel - por isso a sua voz foi dobrada - mas que a reconhece como a eterna Eliza Doolitlle. Podem-se escolher uns quantos momentos em que Hepburn é perfeita. Gene Allen, director artístico do filme, diz no comentário áudio ao filme que ninguém encarnaria melhor uma princesa que Hepburn, referindo-se à prestação desta na segunda parte do filme, onde se comporta como uma senhora. De facto, Hepburn joga em casa. Basta lembrar-nos de Férias em Roma (William Wyler, 1953), onde fez de princesa Ann e das sequências do primeiro baile de Natasha em Guerra e Paz (King Vidor, 1956). Mas se nesses casos há uma naturalidade das personagens nessas circunstâncias, o mesmo não se passa no baile da embaixada em My Fair Lady. Eliza está nervosa. Fica apreensiva quando a rainha da Transilvânia olha directamente para ela e o seu rosto transparece de alívio e de alegria quando esta lhe diz que ela é encantadora. Estes breves segundos são importantes porque conferem consistência à transformação de Eliza. Ela ainda é vendedora de flores desbocada - "Garnn!"- de Covent Garden. E nesse registo "horrivelmente sujo", "deliciosamente baixo", Hepburn não é menos perfeita. É cheia de graça, quer no encanto, quer na sua comicidade. A expressão do rosto é tudo.Veja-se quando dança em cima de uma carroça cheia de folhas de couve e as lança ao ar como se fossem flores. Aliás, nenhuma mulher é mais bonita neste mundo com uma folha de couve na mão do que Audrey Hepburn. Não é a sua voz que se ouve na sequência de Wouldn't it be loverly (apesar de a ter feito com a sua voz - o processo de dobragem foi feito aquando da edição), mas o que se vê não é uma coitadinha a sonhar com uma vida melhor, mas alguém que imagina a alegria ( e mostra-a ao espectador) de sentir a cara, as mãos e os pés quentes, sem ter que fazer nada até à Primavera. A actuação é tão boa que por um momento julgamos estar nesse quente e mesmo quando sabemos que não estamos lá, quando Eliza abre os braços no ar e a carroça a desce, como que a dizer, volta para onde estás, a sua fantasia não perde a alegria. Este descer da carroça é um daqueles momentos mágicos de Hollywood que perdura na memória. E se se ouvir esta sequência com voz de Hepburn, esta descida, por assim dizer, de Eliza é ainda mais conseguida, uma vez que ela confere à palavra cantada "loverly" esse efeito de distanciamento daquilo que ela quer e não tem. Ao mesmo tempo, deve dizer-que que Eliza dificilmente teria uma voz de soprano, não desfazendo Julie Andrews e as suas quatro oitavas, que canta o papel como ninguém.
Dito isto, voltemos a acompanhar os tormentos da pobre Eliza para aprender a falar correctamente, infligidos pelo petulante e misógeno professor Higgins (o momento em que Eliza - uma das poucas oportunidades em que se pode ouvir a voz de Hepburn - imagina a execução do professor sob as suas ordens e com o assentimento do rei é soberbo), assim como o genial percurso do seu pai, um malandro com o maior carácter de sempre: a sua vida é um esforço constante para fugir à moral medíocre da classe média mas é apanhado por ela, precisamente pelo casamento. Apreciemos cada momento, desde o instante em que Eliza se rende ao professor Higgins por chocolate, caixas e caixas de chocolate - todos os dias! -, passando pela primeira prova de fogo em Ascot (produção brilhante) - "Come on Dover! Move your bloomin' arse!" -, até ao grande momento do baile na embaixada e do que daí resulta. My Fair Lady só tem um perigo: uma certa sensação reacionária. Porque é que já não se fazem filmes assim?

K. Douglas

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Umberto Eco, Superstar

Definitivamente, sou uma umbertista (ecoísta, soa mal, não acham?). Seguiria Umberto Eco pelo Mar Vermelho adentro. Algures na Estrada de Damasco da minha adolescência, o Pêndulo de Foucault abateu-se sobre a minha cabeça e ali, meus amigos, eu vi a luz. Desde então, tenho pregado o Umbergelho pelos quatro cantos da minha vã existência, por vezes sem sucesso, confesso. Mas, mesmo assim, consegui fazer alguns neófitos. O K. pode confirmar.
Porque gosto tanto de Umberto Eco? Atentem apenas neste excerto da entrevista que ele deu há um ano para a Paris Review.
"Entrevistador: Leu o Código Da Vinci?
Eco: Sim, também sou culpado por isso. [Antes, ele tinha confessado a sua obsessão por séries televisivas, em particular pelas policiais]
Entrevistador: Esse romance parece uma variação bizarra do Pêndulo de Foucault.
Eco: O autor, Dan Brown, é uma personagem do Pêndulo de Foucault! Eu inventei-o. Ele partilha as mesmas fascinações das personagens: o mundo das conspirações rosa-crucianas, maçónicas e jesuítas. O papel dos Cavaleiros do Templo. O segredo hermético. O princípio de que tudo está ligado. Eu suspeito que Dan Brown nunca deve ter existido."
Oh! Umberto Eco Superstar!
Sally Bowles

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

A escritora-bruxa-boa do Sul



O dia da restauração da independência está cinzento. Tomada esta nota, devo dizer que eu nunca li Dos Passos e que, como tal, me arrisco à danação eterna. Mas talvez seja compensado por ter lido recentemente Tudo o que sobe deve convergir de Flannery O' Connor (há um pormenor na biografia de O'Connor que pode interessar os fãs de House MD: a senhora morreu mesmo de lúpus). A Sally anda por Nova York, eu andei pelo Sul conflituoso, mesquinho e assombrado. A leitura fez-me soprar muitas vezes e isso fez-me virar as páginas mais depressa. Nos embates mortais entre família, entre patrões e empregados, entre brancos e negros, entre o Sul e o Norte, entre um mundo que deixa de existir e um novo que não se reconhece, há uma brutalidade que é muito serena ou, melhor, que é habilmente contida pela autora. Em alguns momentos podemos lembrar-nos de algumas coisas do realismo sul-americano (um caso particular é o conto Greenleaf), embora a brutalidade não seja "histérica", assim como as tonalidades do céu do Sul não se prestam a metáforas exuberantes mas "apenas" a uma descrição apurada da sua cor, do tom preciso do seu branco. São dois mundos diferentes, mas tocam-se naquilo que têm de assombroso e na obstinação das personagens que vivem nele. O' Connor garantia-me uma permanência no Purgatório, mas o facto de ter lido numa assentada Lunar Park de Bret Easton Ellis leva-me de novo para a barca danada. Diga-se de passagem que é muito bom.

K.Douglas