Audrey Hepburn, My Fair Lady, 1964.
Proponho um exercício de regresso à infância com a consciência de esta guardar um grande filme: My Fair Lady de George Cukor (1964). Vejamos pois com os olhos de quem sabe reconhecer um grande filme e, também, ao mesmo tempo, com um olhar que se abre e vê o encanto de Audrey Hepburn, que não tinha, é certo, voz para o papel - por isso a sua voz foi dobrada - mas que a reconhece como a eterna Eliza Doolitlle. Podem-se escolher uns quantos momentos em que Hepburn é perfeita. Gene Allen, director artístico do filme, diz no comentário áudio ao filme que ninguém encarnaria melhor uma princesa que Hepburn, referindo-se à prestação desta na segunda parte do filme, onde se comporta como uma senhora. De facto, Hepburn joga em casa. Basta lembrar-nos de Férias em Roma (William Wyler, 1953), onde fez de princesa Ann e das sequências do primeiro baile de Natasha em Guerra e Paz (King Vidor, 1956). Mas se nesses casos há uma naturalidade das personagens nessas circunstâncias, o mesmo não se passa no baile da embaixada em My Fair Lady. Eliza está nervosa. Fica apreensiva quando a rainha da Transilvânia olha directamente para ela e o seu rosto transparece de alívio e de alegria quando esta lhe diz que ela é encantadora. Estes breves segundos são importantes porque conferem consistência à transformação de Eliza. Ela ainda é vendedora de flores desbocada - "Garnn!"- de Covent Garden. E nesse registo "horrivelmente sujo", "deliciosamente baixo", Hepburn não é menos perfeita. É cheia de graça, quer no encanto, quer na sua comicidade. A expressão do rosto é tudo.Veja-se quando dança em cima de uma carroça cheia de folhas de couve e as lança ao ar como se fossem flores. Aliás, nenhuma mulher é mais bonita neste mundo com uma folha de couve na mão do que Audrey Hepburn. Não é a sua voz que se ouve na sequência de Wouldn't it be loverly (apesar de a ter feito com a sua voz - o processo de dobragem foi feito aquando da edição), mas o que se vê não é uma coitadinha a sonhar com uma vida melhor, mas alguém que imagina a alegria ( e mostra-a ao espectador) de sentir a cara, as mãos e os pés quentes, sem ter que fazer nada até à Primavera. A actuação é tão boa que por um momento julgamos estar nesse quente e mesmo quando sabemos que não estamos lá, quando Eliza abre os braços no ar e a carroça a desce, como que a dizer, volta para onde estás, a sua fantasia não perde a alegria. Este descer da carroça é um daqueles momentos mágicos de Hollywood que perdura na memória. E se se ouvir esta sequência com voz de Hepburn, esta descida, por assim dizer, de Eliza é ainda mais conseguida, uma vez que ela confere à palavra cantada "loverly" esse efeito de distanciamento daquilo que ela quer e não tem. Ao mesmo tempo, deve dizer-que que Eliza dificilmente teria uma voz de soprano, não desfazendo Julie Andrews e as suas quatro oitavas, que canta o papel como ninguém.
Dito isto, voltemos a acompanhar os tormentos da pobre Eliza para aprender a falar correctamente, infligidos pelo petulante e misógeno professor Higgins (o momento em que Eliza - uma das poucas oportunidades em que se pode ouvir a voz de Hepburn - imagina a execução do professor sob as suas ordens e com o assentimento do rei é soberbo), assim como o genial percurso do seu pai, um malandro com o maior carácter de sempre: a sua vida é um esforço constante para fugir à moral medíocre da classe média mas é apanhado por ela, precisamente pelo casamento. Apreciemos cada momento, desde o instante em que Eliza se rende ao professor Higgins por chocolate, caixas e caixas de chocolate - todos os dias! -, passando pela primeira prova de fogo em Ascot (produção brilhante) - "Come on Dover! Move your bloomin' arse!" -, até ao grande momento do baile na embaixada e do que daí resulta. My Fair Lady só tem um perigo: uma certa sensação reacionária. Porque é que já não se fazem filmes assim?
K. Douglas