Antes de tudo, peço as máximas desculpas pela minha ausência. Para felicidade dos ávidos leitores deste blogue (e, neste momento, acabei de entrar numa dimensão paralela!), regressei mas não em força. É verdade, acabei de acordar e estou exausta do número de ontem à noite. Por isso, vou limitar-me a tentar transcrever algo que uma amiga minha me contou.
“Nunca gostei que me fizessem perguntas pessoais. Porém, há uma que me petrifica, que gela o meu sangue até à aorta: Qual é a sua profissão?
A verdade é que, há uns anos atrás, tive a infeliz ideia de ser pouco prática nas minhas escolhas para o futuro e de cometer um suicídio profissional. Quando estava a preencher o boletim de candidatura à universidade, a minha esferográfica ganhou vida própria e, ao invés de escrever «Gestão» ou «Economia», gatafunhou «História». Durante quatro anos, tive o prazer (ou talvez não!) de conviver diariamente com figuras e acontecimentos que inspirariam um David Linch. Depois (oh, demência!), aprofundei a crise profissional e dediquei-me à investigação. Passo os meus dias a percorrer os ambientes insalubres das bibliotecas e arquivos de Lisboa.
Explicar isto a um leigo é sempre uma tarefa árdua, um décimo terceiro trabalho de Hércules. Vou agora reproduzir um diálogo-tipo a partir do momento em que sou questionada sobre a minha vida profissional. Acreditem, é sempre uma boa maneira de tornar longa uma conversa. Chamemos Lola Montez ao interlocutor-tipo. Aqui vai.
«Lola Montez (LM) – Então, o que é que você faz?
Eu – Sou investigadora?
LM – Da PJ?»
Este é um dos raros momentos na minha vida em que me sinto intimidante.
«Eu – Não. Licenciei-me em História e faço investigação nesta área.
LM – Que interessante! Sabe uma coisa,...»
Neste momento, a conversa pode tomar dois rumos distintos:
Hipótese A: «... eu também gosto muito de História»
Hipótese B: «... eu nunca gostei lá muito de História»
Ora bem, no caso da hipótese A, LM irá dizer que também gostaria de ter tirado o curso de História mas que não o fez (sensata criatura!). Decerto que escolherá uma época de eleição. Existe uma probabilidade de 86,4% dessa época ser «os Descobrimentos». «Ah! Como eu gosto dos Descobrimentos! Naquela época éramos grandes, tínhamos metade do mundo!». O sempre presente saudosismo (com um quê de mentalidade de Estado Novo) pelos tempos do Tratado de Tordesilhas! Então, LM debitará uma série desconexa de conhecimentos que adquiriu durante a frequência do ensino escolar. Fá-lo-á orgulhosamente, mostrando que, afinal, até sabe quase tanto como um miúdo de dez anos.
«Eu – Pois...»
No caso da hipótese B, a situação complica-se e tende a se alongar por mais umas horas. LM tentará justificar a sua falta de gosto pelo conhecimento histórico, o que deixaria qualquer Heródoto de cabelos em pé. Há uma figura omnipresente, a do «mau professor». O «mau professor» é aquele que obrigava os alunos a saberem todas as datas, dinastias, naus da armada de Vasco da Gama, freiras de D. João V, etc., etc.... O «mau professor» até fazia uso da palmatória do caso do aluno não saber quantos centímetros media Napoleão. Frequentemente, ao «mau professor» contrapõe-se o «bom professor», aquele que tentou recuperar o gosto pela História, que se esforçou por mostrar que «aquilo é mais compreender do que decorar». Porém, nem o «bom professor» salvou aquela alma.
«Eu – Pois...»
A situação complica-se quando LM é curioso e quer saber «Então, o que é que você investiga?». Neste momento, aconselho a simplicidade, ser o mais generalista possível, se for preciso, ocultar um pouco. Nunca tente ser demasiado específico, salvo se quiser lançar o incómodo no interlocutor. Porém, uma resposta como o «Aporias do número na representação egípcia de Deus como abertura hermenêutica» pode ser óptima para ouvir um suspiro de falsa compreensão «Ah...» e acabar logo com a conversa. Por outro lado, existe também a hipótese de LM querer que «troque isso por miúdos». Conclusão: é bom ter sempre à mão um relatório do projecto de trabalho em Times New Roman, tamanho 12, espaçamento 1,5.
E durante toda esta conversa, eu penso: «Porque é que não sou contabilista?». É verdade meus caros, é preciso muito descaramento para se dizer a um contabilista: «Que interessante!», ou «Eu também gostava muito de ser contabilista?», ou mesmo um «Amo o POC com todas as minhas forças!». A conversa acaba logo no «Sou contabilista». É tudo tão fácil e simples... Estou farta de ser um animal exótico!”
Enfim, isto foi o que essa minha amiga me contou. Coitada, até é uma boa rapariga! Por mim, vou voltar para o meu gin e para o meu Kurt Weill. Auf Wiedersein!
“Nunca gostei que me fizessem perguntas pessoais. Porém, há uma que me petrifica, que gela o meu sangue até à aorta: Qual é a sua profissão?
A verdade é que, há uns anos atrás, tive a infeliz ideia de ser pouco prática nas minhas escolhas para o futuro e de cometer um suicídio profissional. Quando estava a preencher o boletim de candidatura à universidade, a minha esferográfica ganhou vida própria e, ao invés de escrever «Gestão» ou «Economia», gatafunhou «História». Durante quatro anos, tive o prazer (ou talvez não!) de conviver diariamente com figuras e acontecimentos que inspirariam um David Linch. Depois (oh, demência!), aprofundei a crise profissional e dediquei-me à investigação. Passo os meus dias a percorrer os ambientes insalubres das bibliotecas e arquivos de Lisboa.
Explicar isto a um leigo é sempre uma tarefa árdua, um décimo terceiro trabalho de Hércules. Vou agora reproduzir um diálogo-tipo a partir do momento em que sou questionada sobre a minha vida profissional. Acreditem, é sempre uma boa maneira de tornar longa uma conversa. Chamemos Lola Montez ao interlocutor-tipo. Aqui vai.
«Lola Montez (LM) – Então, o que é que você faz?
Eu – Sou investigadora?
LM – Da PJ?»
Este é um dos raros momentos na minha vida em que me sinto intimidante.
«Eu – Não. Licenciei-me em História e faço investigação nesta área.
LM – Que interessante! Sabe uma coisa,...»
Neste momento, a conversa pode tomar dois rumos distintos:
Hipótese A: «... eu também gosto muito de História»
Hipótese B: «... eu nunca gostei lá muito de História»
Ora bem, no caso da hipótese A, LM irá dizer que também gostaria de ter tirado o curso de História mas que não o fez (sensata criatura!). Decerto que escolherá uma época de eleição. Existe uma probabilidade de 86,4% dessa época ser «os Descobrimentos». «Ah! Como eu gosto dos Descobrimentos! Naquela época éramos grandes, tínhamos metade do mundo!». O sempre presente saudosismo (com um quê de mentalidade de Estado Novo) pelos tempos do Tratado de Tordesilhas! Então, LM debitará uma série desconexa de conhecimentos que adquiriu durante a frequência do ensino escolar. Fá-lo-á orgulhosamente, mostrando que, afinal, até sabe quase tanto como um miúdo de dez anos.
«Eu – Pois...»
No caso da hipótese B, a situação complica-se e tende a se alongar por mais umas horas. LM tentará justificar a sua falta de gosto pelo conhecimento histórico, o que deixaria qualquer Heródoto de cabelos em pé. Há uma figura omnipresente, a do «mau professor». O «mau professor» é aquele que obrigava os alunos a saberem todas as datas, dinastias, naus da armada de Vasco da Gama, freiras de D. João V, etc., etc.... O «mau professor» até fazia uso da palmatória do caso do aluno não saber quantos centímetros media Napoleão. Frequentemente, ao «mau professor» contrapõe-se o «bom professor», aquele que tentou recuperar o gosto pela História, que se esforçou por mostrar que «aquilo é mais compreender do que decorar». Porém, nem o «bom professor» salvou aquela alma.
«Eu – Pois...»
A situação complica-se quando LM é curioso e quer saber «Então, o que é que você investiga?». Neste momento, aconselho a simplicidade, ser o mais generalista possível, se for preciso, ocultar um pouco. Nunca tente ser demasiado específico, salvo se quiser lançar o incómodo no interlocutor. Porém, uma resposta como o «Aporias do número na representação egípcia de Deus como abertura hermenêutica» pode ser óptima para ouvir um suspiro de falsa compreensão «Ah...» e acabar logo com a conversa. Por outro lado, existe também a hipótese de LM querer que «troque isso por miúdos». Conclusão: é bom ter sempre à mão um relatório do projecto de trabalho em Times New Roman, tamanho 12, espaçamento 1,5.
E durante toda esta conversa, eu penso: «Porque é que não sou contabilista?». É verdade meus caros, é preciso muito descaramento para se dizer a um contabilista: «Que interessante!», ou «Eu também gostava muito de ser contabilista?», ou mesmo um «Amo o POC com todas as minhas forças!». A conversa acaba logo no «Sou contabilista». É tudo tão fácil e simples... Estou farta de ser um animal exótico!”
Enfim, isto foi o que essa minha amiga me contou. Coitada, até é uma boa rapariga! Por mim, vou voltar para o meu gin e para o meu Kurt Weill. Auf Wiedersein!
Sally Bowles